Três tambores: exploração animal por trás da mansidão e da fraternidade
domingo, junho 27, 2010
Postado por Unknown
do anda
Um artigo meu escrito recentemente, chamado “A crueldade dos  ‘três tambores’ do rodeio”, causou revolta entre os praticantes do  dito “esporte”. Os comentários do Arauto da Consciência e, ainda em  menor quantidade, da ANDA foram bombardeados por competidores e  competidoras revoltados por eu ter acusado sua modalidade de cruel e  generalizado os maus-tratos que ocorrem no manejo de instrumentos como  espora e açoites. Assim sendo, resolvi escrever um novo texto para  elucidar melhor por que os três tambores têm a mesma oposição minha e  dos defensores do abolicionismo animal que rodeios e vaquejadas.
Me disseram que os três tambores proporcionam uma comunhão afetiva  entre cavaleiro e cavalo, sendo o primeiro não senhor do último, mas  quase um “irmão”. Me falaram também de engajamentos filantrópicos com os  lucros do “esporte” e da venda (sic) dos animais, da presença  de conselhos de ética, veterinários e outras entidades que assegurariam  um tratamento “digno” aos bichos. Fui acusado de escrever sem conhecer a  realidade, de emitir um opinião leiga e, logo, irresponsável.
Reconheço que alguns comentários eu realmente tive alguma dificuldade  de responder, e percebi que o motivo maior foi ter chegado ao limite da  crítica relacionada a bem-estar animal – muito embora o artigo tenha  falado, em um parágrafo, do caráter de exploração animal da competição.  Foi falho ter exposto mais a crítica pró-bem-estar, facilmente  questionável por quem pratica o dito “esporte”, do que a abolicionista, e  isso induziu a uma equiparação indevida da modalidade ao rodeio e à  vaquejada, pseudoesportes que por sua vez consistem na crueldade quase  explícita.
Os três tambores, por serem muito mais próximos do hipismo do que do  rodeio, conforme ficou expresso nos diversos comentários e também é  visível nos mais diversos vídeos, são de fato um “esporte” com animais  no qual a exploração animal é bem menos óbvia do que a tão largamente  criticada montaria de touros, por ter muito menos demonstrações  explícitas de maus-tratos. Nele não há peões ou vaqueiros sedentos de  vencer o “adversário” animal, mas cavaleiros que afirmam competir em  irmandade com os cavalos.
Mas isso não quer dizer que eu vim me retratar por completo do artigo  passado e dizer que passei a ver o três tambores com bons olhos. Mas,  sim, esclarecer melhor por que, mesmo com esse panorama alegado de  bem-estar e fraternidade cavaleiro-cavalo, continuo mostrando que esse  tipo de competição não se inclui no que o abolicionismo animal pode  considerar ético e aceitável e reivindicando mais ação de entidades de  direitos animais contra o uso de bichos para entretenimento seja lá de  qual tipo for.
Não é obvio como no rodeio, mas há um sistema de exploração animal  desde a arena de corrida até a procriação dos cavalos.
Em primeiro lugar, os vários adereços de controle e incitação usados  no cavalo durante a competição deixam visível: o animal é tratado como  máquina de velocidade, controlável pelo cavaleiro. Diversos adereços,  como o cabresto, as rédeas e os freios, visam manipular para onde e quão  rápido o bicho deve correr. Sem falar nos outrora citados açoite e espora, cujos usos,  mesmo não sendo acessórios cortantes nem causando ferimentos visíveis ou  dores fortes, são uma agressão ao animal.
Hoje em dia não se pensaria em usar equipamento de controle ou  açoites para controlar atletas humanos. Seria visto como uma violência  tanto física quanto moral – “que humilhante é tratar seres humanos como  carros de corrida”, pensariam. Mas são usados em cavalos, na dita  inofensiva prova dos três tambores, numa demonstração da visão de que,  por mais “irmão” que o cavalo seja do cavaleiro, ele nunca terá o mesmo  estatuto moral que o ser humano, de ser portador do direito à dignidade e  ao consequente não tratamento como coisa e propriedade.
Não questiono mais se isso é cruel por causar violência explícita ou  dor, assim como os rodeios e vaquejadas, mas sim se é ético competir com  animais controlando-os como objetos, como carros, algo que não se  admitiria fazer com pessoas.
E pergunto: se a relação entre cavaleiros e cavalos é tão fraternal,  por que não se dispensa o uso desses equipamentos nas provas oficiais,  usando apenas sela e estribo para manter o cavaleiro montado em  segurança, já que o cavalo entenderia inteligentemente para onde e quão  rápido o “irmão” humano quer que ele corra.
Corroborando o argumento de que os animais supostos “irmãos” dos  cavaleiros são de fato tratados como propriedade humana, está o fato de  que existe um comércio de cavalos usados nessas competições. Não que o  competidor venda o seu “irmão” algum dia, mas muito provavelmente – para  eu não dizer que isso seria generalizado – este será comprado no início  de sua “vida útil”, para uma vida de competições velozes. Tal como um  carro zero de corrida.
A ética dos direitos animais repudia qualquer coisificação,  mercantilização e proprietarização dos animais, da mesma forma e pelos  mesmos motivos que a ética convencional que vigora hoje repudia o  tratamento de homens e mulheres como coisas, mercadorias e propriedade  de outrem. Fatalmente isso implica que “esportes” que usam animais, das  mais sangrentas touradas até as mais amistosas provas de três tambores,  serão alvo de objeção ética.
Também há a questão: o que é preferível e ideal para o animal, viver  em liberdade na natureza – ou em santuários de refúgio, para animais  cuja espécie foi há milênios apartada do seu vínculo ao equilíbrio  ecológico de seu ecossistema de origem –, ou ser obrigado a uma vida de  competições que ele não escolheu trilhar.
Afirmam que o cavalo, sendo inteligente, se comporta demonstrando que  gosta de correr com aquele que se diz seu “dono”. Talvez seja válido  dizer que o cavalo gosta de ser montado por seu cavaleiro na fazenda,  sem acessórios de controle, caso haja uma relação afetiva tal como um  cão com seu responsável e carinhoso tutor.
Mas é questionável se o  cavalo gosta – em outras palavras, sente-se bem – de ter seu corpo  controlado e artificialmente induzido à corrida – e, em muitos casos,  açoitado e esporado – numa competição em que está exposto a intensos  barulhos e iluminação, em situação estressante, numerosas vezes num ano.
Seria isso realmente preferível ao animal, mais do que viver livre num  refúgio, sem obrigações vinculadas a interesses que não dizem respeito a  suas necessidades e vontades.
Por fim, a questão do uso do animal por interesse humano. Qualquer  “esporte” que use bichos para entretenimento, por mais que se diga que o  animal “gosta” de competir, é uma forma de exploração animal. A ética  tradicional de hoje condena o uso de seres humanos como propriedade a  serviço dos interesses de outrem, o que inclui usar para fins de  entretenimento pessoas que não escolheram expor-se (como no caso dos freak  shows do século 19). O abolicionismo animal, por sua vez, estende  essa condenação aos animais não humanos.
Fazem-se as perguntas, complementando o questionamento feito mais  acima: o animal escolhe praticar um “esporte” que visa ao entretenimento  humano? Ele afirma mesmo, à sua maneira, que gosta de correr numa arena  barulhenta e cheia de luz, sob o controle de diversos instrumentos, e  está afim de vivenciar tal situação muitas vezes ao longo de sua vida  até sua aposentadoria? Ele realmente pensa que isso lhe faz bem.
E há o detalhe de o cavalo ter sido dado à luz justamente para ser um  animal de competições, tanto que ele, como uma “boa” mercadoria, é  vendido em sua maturidade física ao cavaleiro disposto a pagar por sua  compra, por ser um animal “muito bom para competições de três tambores”.
Ou seja, nasce para servir ao ser humano, para satisfazer os  interesses do vendedor de cavalos, do próprio cavaleiro, dos  organizadores de competições, dos proprietários de arenas e do público  que prestigia o “esporte” para sua diversão –, como toda espécie  submetida à exploração. Mesmo que o cavaleiro diga que o bicho é  praticamente irmão seu e “gosta” de competir, isso não anula o fato de  que ele só está ali – ou, pior, só existe – porque pessoas se  interessaram em seu nascimento e amadurecimento e dele se beneficiam  cultural e economicamente.
Saio assim da questão do mero bem-estar – e até me retrato por ter  generalizado a violência física que nem todos os cavaleiros promovem  contra os cavalos –, mas continuo denunciando que “esportes” como os  três tambores são, sim, formas de exploração animal que lançam mão da  objetificação, mercantilização e reprodução interesseira de bichos, fato  que se esconde na relação “fraternal” entre competidores e animais e na  ausência de agressões explícitas contra estes últimos.
Se substituíssem cavalos por humanos e mantivessem na íntegra todo o  restante do sistema, passaria a ser um pseudoesporte abominável aos  olhos das pessoas e censurável pelas leis de direitos humanos. Mas, como  são animais não humanos, há toda uma aprovação moral por parte da  maioria da sociedade. Assim sendo, continuo questionando eticamente os  três tambores.
E aproveito para esclarecer que os três tambores ainda não se  tornaram alvo de críticas massivas das entidades de defesa animal porque  infelizmente uma enorme parte destas  é bem-estarista e preferem  manter-se em cima do muro porque não há tantos maus-tratos assim, não há  uma crueldade física intrínseca ao tal “esporte” a qual lhes permita  clamar que “três tambores devem ser proibidos por lei porque são  crueldade contra animais”. Essa modalidade só passará a ser alvo de  críticas e repúdios quando o abolicionismo animal no Brasil se  fortalecer, porque seu problema é muito mais de ética e exploração do  que propriamente de maus-tratos e crueldade explícita.
 
 








 

 
